O RISCO QUE O BRASIL CORRE AO FLEXIBILIZAR DEMAIS A LEI DOS AGROTÓXICOS

Questões semânticas à parte há algo fora do lugar na
discussão sobre a nova Lei dos Agrotóxicos. Comecemos pelo fundamental:
independentemente de como os chamemos – agrotóxicos, defensivos agrícolas ou
produtos fitossanitários –, estamos falando de algo necessário para a produção
de alimentos para mais de 7,8 bilhões de pessoas. Ou seja, estamos diante de um
mal necessário. Por gerar possíveis efeitos colaterais, porém, seu uso deveria
limitar-se ao mínimo possível. Diga-se de passagem, nada diferente daquilo que
defenderíamos para outros produtos potencialmente nocivos. 

Nesse sentido, talvez estejamos derrapando no fundamental.
Para contrabalançar os exageros de quem pouco sabe sobre a realidade dos
defensivos agrícolas, a percepção é a de que muitos optam por um discurso
pautado por argumentos localizados no outro extremo do debate. Por momentos a
impressão é a de que a estratégia escolhida para combater o “proibicionismo”
envolve a minimização dos problemas potenciais derivados do uso inadequado de
agrotóxicos. De repente, os defensivos se transformaram em uma bandeira de um
outro Brasil, livre de “ecochatos”, “esquerdistas” e outros grupos a serem
combatidos. E para defender tais bandeiras, não vemos problema se nossa decisão
é a de seguir um caminho distinto de sociedades cuja organização admiramos. 

Tampouco nos escandalizamos com uma regra que, na prática,
adota uma interpretação vaga para uma noção tão fundamental como “risco”. Temos
pressa em adotar as últimas inovaçoes introduzidas no mercado de defensivos,
mas infelizmente damos pouca atenção às inovaçoes institucionais vindas do
mundo desenvolvido ou à provisão de informação direcionada aos usuários desses
produtos. Diversas comunidades rurais ao redor do Brasil convivem com índices
de câncer superiores à média nacional – um padrão que, segundo sugerem as
pesquisas, é reforçado pelo uso inadequado de agrotóxicos. Diante de tais
riscos, não deveríamos agir com maior precaução? Segundo a proposta atual,
quando uma evidência científica seria capaz de deter a comercialização de um
defensivo? Usar defensivos é necessário, mas nem por isso devemos fechar os
olhos para preocupaçoes e questionamentos relevantes.  

Ou, ainda, não seria prudente avaliar mudanças legais com
base em uma noção de desenvolvimento que leve em conta tanto os lucros
potenciais, quanto uma avaliação do impacto ao bem-estar dos grupos diretamente
afetados pela mudança? Não será importante o que órgãos como a Anvisa têm a nos
explicar e aconselhar? De fato, muito nos preocupamos com as ameaças à
competitividade do agronegócio brasileiro. Não raramente nos esquecemos, porém,
de associar as estratégias para vendermos mais com o modelo de sociedade que
desejamos reproduzir. Mais de uma vez escutei queixas sobre as dificuldades de
competir com países onde os empregados possuem menos direitos trabalhistas e legislaçoes
ambientais são menos estritas. Pergunto: são tais arcabouços institucionais
dignos de admiração? É isso o que queremos para o Brasil?

 O mesmo se aplica a outros casos conhecidos. Pressões por
“competitividade” ajudam a explicar, por exemplo, a falta de cuidado com que
administramos nosso sistema de fiscalização sanitária e fitossanitária. Uma
“mentirinha” em nome da eficiência aqui, um pouco de “jeitinho” para viabilizar
embarques acolá e o resultado já sabemos qual é: mercados fechados à exportação
de proteína animal made in Brazil, danos de médio prazo à reputação do país,
prejuízos a milhares de produtores que fizeram a lição de casa. Falar de
corrupção é um atalho fácil, que esconde uma verdade inconveniente: muitas
vezes a flexibilização de regras destinadas a proteger as pessoas é aceita se,
com isso, o resultado é maior “competitividade” aos olhos do mundo. 

 Defensivos agrícolas são um mal necessário. Por se tratarem
de um “mal”, a legislação deveria criar incentivos para que o uso de determinadas
substâncias diminuísse ao longo do tempo. Um certo fatalismo permeia
iniciativas como a nova Lei dos Agrotóxicos: se precisamos de agrotóxicos no
curto prazo para produzir alimentos, desburocratizemos ao máximo o seu uso. Nos
países desenvolvidos, por outro lado, observamos restriçoes crescentes que,
entre outras consequências, estimulam as empresas a investirem em pesquisas que
desenvolvam produtos mais seguros. Ao facilitarmos a introdução de agrotóxicos
banidos em outros países no mercado brasileiro, fazemos um favor a organizaçoes
que poderão alargar os ciclos de vida de produtos em desuso em outras
sociedades. Será impossível combinar maior agilidade no processo de aprovação
de novos produtos com um método de análise no qual tenham voz mais ativa
organismos com reconhecida capacidade de mensurar os riscos da decisão? O que
ganhamos em troca por permitir o uso de substâncias atualmente proibidas?

 Maior competitividade, dirão alguns. Não reclamemos,
entretanto, caso governos de outros países usarem listas de substâncias usadas
pelo Brasil como argumento contra a produção agrícola nacional. Por sinal,
protecionistas adoram termos como dumping ambiental. Para que dar motivos a
quem deseja fechar mercados ou reduzir a capacidade de agregarmos valor à nossa
produção, se podemos abraçar uma agenda plenamente conectada com as melhores
práticas ao redor do mundo? Se a intenção é construir uma imagem moderna do
agronegócio brasileiro, em que medida a atual legislação contribui para o
objetivo? Modernizar as regras do jogo é preciso – afinal, estamos falando de
um mal necessário. Porém, uma suposta agilidade não pode vir a qualquer
preço. 

(Fonte: CaféPoin)