MAS AFINAL, O QUE É UM CAFÉ ESPECIAL?


Por Enrique Alves*

Esta é uma pergunta recorrente e que me persegue desde a
vida acadêmica, e que, ainda hoje, me dá calafrios para responder.

Do ponto de vista técnico, eu diria que a qualidade do café
é o somatório de todas as açoes realizadas do plantio ao pós-colheita. Se isso
é realizado seguindo-se as boas práticas agronômicas, o café terá qualidade.
Sem dúvidas sobre isso! Minha mãe resumiria de maneira mais sucinta e
eficiente: é apenas uma questão de capricho!

Mas, será que todo café de qualidade é especial? Essa não é
uma relação direta e é aí que mora o perigo. Talvez, esta seja a explicação da
razão de alguns cafeicultores “caprichosos” continuarem a vender seu café como
uma commodity.

Antes de ser acusado de confundir o leitor, vale aí uma
explicação que talvez nos ajude a compreender melhor a situação. Todo café
especial tem qualidade! É, eu sei, isso não está ajudando. Mas, vamos pensar em
um cenário diferente que possa explicar isso melhor.

Façamos uma analogia com os famosos Reality Shows de
competiçoes musicais. Por diversas vezes ouvimos os jurados dizerem: “A escolha
da música, a afinação, o ritmo, está tudo tecnicamente perfeito! Mas, eu não
senti verdade, sentimento e personalidade. Não me emocionou!”. Sabe por que o
jurado disse isso? O candidato em questão, apesar de claramente talentoso e
apresentar diversos critérios técnicos de qualidade musical em sua
apresentação, não era autêntico, memorável. E não despertou emoção. Está aí a
explicação sobre o que torna algo ou alguém especial.

Tecnicamente falando, os grãos são considerados especiais
quando as somas da avaliação das suas propriedades organolépticas recebem
pontuação maior ou igual a 80 pontos, isso de acordo com a Specialty Coffee
Association (SCA). Mas, na prática, a valorização do que é realmente um grão
especial vai além disso. Os cafés especiais mexem com nossos sentidos e, na
sequência, com a nossa memória. O meu amigo e professor Paulo César Corrêa
costuma dizer que o café especial te leva para as nuvens. Esta é uma boa
definição. Eu só acrescentaria que essa viagem precisa ser de primeira classe.
É aí que entra o capricho.

Por isso, muitas vezes, temos cafés que são tecnicamente
perfeitos e são vendidos como commodities. Não são memoráveis, não te levam
para uma viagem sensorial e emotiva. O café especial precisa ser único,
autêntico e estar vinculado com o ambiente de produção, com o fator humano e
com suas tradiçoes e cultura. E, sim, a história conta! Nesse caso, os meios
justificam o produto final. De nada vale uma bebida sensorialmente perfeita se
ela não engloba os aspectos sociais e ambientais da produção.

Eu já provei muitos cafés ao longo da vida, mas, quando
penso em um café especial, o que me vem à mente é o café adoçado com rapadura
(melado) preparado pela minha avó, sabor de infância. Em todas as minhas férias
era sempre o mesmo ritual. Acordava e ficava sentado próximo ao fogão à lenha
enquanto ela preparava café e bolinhos de chuva.

Este ano voltei no tempo graças a um café muito especial. Eu
me casei sob o pôr do sol, em uma lavoura de café e troquei o champanhe por um
brinde com um café Robusta Amazônico Especial. Era originado de frutos maduros
e selecionados, fermentados pelo método Sprouting Process, preconizado pelo
grande barista Leo Moço, e seco ao sol sob a proteção de uma estufa. Tive uma
verdadeira epifania, me lembrei da minha falecida avó, pensei em todas as
pessoas que amo e fiz uma viagem sensorial.

Este era, verdadeiramente, um café especial. Tinha capricho
e… emoção. Possuía atributos de aroma e sabor que me lembraram garapa e doce
caramelado, como os cafés da minha avó. Tinha história. Produzido no município
de Cacoal, por uma agricultura de base familiar, numa plataforma sustentável e
o capricho e devoção pela cultura do café era passado de pai para os filhos.
Naquele momento eu senti que a minha história de vida como consumidor se
misturava a do produtor. E isso me pareceu bom e gratificante ao mesmo tempo.

Isso tudo quer dizer que, o que faz o café especial é a
conexão estabelecida com quem bebe. O desafio da cadeia de produção e
transformação do café é traduzir, em grãos selecionados e cuidadosamente
processados, as sensaçoes que nos levem a uma viagem temporal e espacial.
Conheço um grande empresário que mudou a realidade de toda uma comunidade de
produtores quando provou um café de sabor e aroma exóticos com a alcunha de “o
futuro”. No momento da degustação, esse café criou uma ligação instantânea de
uma ponta à outra da cadeia. E, como uma verdadeira corrente do bem, uniu
cafeicultores, pesquisadores, extensionistas e a indústria com a meta de
produzir cafés genuinamente especiais.

Por isso sempre que ouço alguém dizer: “Aquele café não é
nada melhor que o meu. E foi vendido pelo dobro do preço só porque tinha uma
história bonita”, por muitas vezes esse produtor está correto. Mas, o pequeno
erro está no “só”. É nessa palavra que reside a diferença entre o eliminado na
primeira semana e o grande campeão do Reality Show.  Não é “só”, é soul (alma), é a história de
vida do produtor. E isso conta!

Há quem diga que a necessidade de qualidade atrelada às
sensaçoes e a importância da história é coisa de gente antenada, daquelas que
surfam as novas ondas do café. Mas, na verdade, não foi sempre assim para o
café? O Pastor Kaldi não usou o café para se alimentar. Queria para si a
excitação e inquietude que as suas cabras sentiam ao comer os frutos vermelhos
de arbustos que cresciam à beira da mata.

O café, depois da água, é a bebida mais consumida no mundo e
faz parte da história de inúmeras geraçoes. Sempre despertou paixões, já foi
exaltado, proibido, exilado e agora, cultuado nas suas mais diversas versões.
Café é aroma, sabor e sensação! Não é uma necessidade, é vontade.

*Enrique Anastácio Alves é doutor na área de Engenharia
Agrícola. Desde 2010, atua como pesquisador A na Embrapa Rondônia, nas áreas de
colheita, pós-colheita do café e qualidade de bebida.