
“CONTRATOS INTELIGENTES”, BLOCKCHAIN INSPIRA PROJETOS PARA O DESENVOLVIMENTO DE SISTEMAS MAIS SEGURO
Por Bruno Varella Miranda
Impulsionado pela euforia derivada das altas do bitcoin, o
debate sobre o blockchain (tecnologia de registro distribuído que visa a
descentralização como medida de segurança. São bases de registros e dados
distribuídos e compartilhados que têm a função de criar um índice global para
todas as transaçoes que ocorrem em um determinado mercado) vai muito além das
chamadas criptomoedas. Relatório recente publicado pela Organização das Naçoes
Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO, sigla em inglês) discute potenciais
aplicaçoes da tecnologia no setor agrícola, além de descrever uma série de
exemplos de empresas e iniciativas que já aplicam o blockchain na resolução de
problemas enfrentados por produtores rurais. As vantagens potenciais são
consideráveis, assim como os desafios.
Comecemos pelas boas notícias. Em primeiro lugar, o
blockchain poderia ser utilizado para o desenho dos chamados “contratos
inteligentes”, que viabilizariam o oferecimento de seguros a produtores
familiares. Graças à conexão com fontes de dados primários sobre eventos
climáticos, seria possível imaginar o estabelecimento de contratos que
efetuassem um pagamento automático aos produtores rurais em caso de um
desastre. Os “contratos inteligentes” trariam agilidade ao mercado de seguros a
um custo relativamente baixo, permitindo – em teoria – às empresas o
oferecimento de soluçoes a pequenos produtores rurais.
Querem outro exemplo? Em diversos países em desenvolvimento,
o blockchain inspira projetos para o desenvolvimento de sistemas mais seguros
de registro da propriedade de terras. Em seus aspectos mais óbvios, a criação
de um sistema descentralizado reduziria consideravelmente a possibilidade de
fraudes nos documentos. Ademais, levaria à existência de uma realidade em que a
situação das transaçoes de terra seria atualizada em tempo real. Outra vantagem
potencial – muitas vezes esquecida – diz respeito à capacidade de recuperação
dos dados em caso de destruição dos arquivos originais. A existência de um
sistema baseado na tecnologia blockchain elimina a preocupação com a
recuperação da memória institucional de um país após um conflito armado ou
desastre natural. Afinal, os registros estarão seguros da destruição causada
por humanos ou pela natureza.
No que se refere ao funcionamento das cadeias de suprimento
agroindustriais, o blockchain permite a adoção de políticas mais ambiciosas e
transparentes de rastreabilidade. Em outras palavras, as empresas não apenas
poderiam materializar as promessas de acompanhamento estrito das práticas adotadas
ao longo de toda a cadeia – algo muito custoso com as tecnologias do fim do
século XX – como também teriam menor espaço para relativizá-las – uma prática
comum, tendo em vista os altos custos de monitoramento. É crescente o interesse
pelo desenvolvimento de sistemas que permitam ao consumidor obter toda a
informação sobre um determinado produto ainda no local em que decide se o
comprará.
Passemos agora à discussão de alguns dos desafios derivados
da consolidação dessas novidades. Ninguém questionaria a afirmação “mais
informação é melhor” – ao menos a princípio. Entretanto, o processamento dessas
informaçoes envolve um custo que não se limita ao seu fluxo ao longo de uma
cadeia de suprimento. Embora o blockchain reduza os custos de reunir e transferir
um grande volume de dados de um ponto ao outro, a mente humana continua com a
mesma capacidade de processá-los. Serão capazes os consumidores do futuro de
lidar com o número crescente de informaçoes disponíveis? Não será uma política
de “rastreabilidade absoluta” sinônimo de esvaziamento da própria ideia de
rastreabilidade?
Também é necessário lembrar que, por trás das ilusões de
erosão da autoridade do governo central que permeiam muitas das análises
inspiradas no avanço tecnológico contínuo das últimas décadas, um complexo
processo de evolução histórica existe. Nele, Estados emergem como uma
importante garantia para a realização de transaçoes. É bem verdade, tal sistema
não funciona de forma eficiente em todos os lugares do mundo. Porém, o simples fato
de sermos capazes de explicar o desenvolvimento econômico relativo de um país
por meio de uma análise do seu nível de eficiência institucional demonstra que
o papel do Estado nessa dinâmica não é trivial. De fato, a materialização de um
“contrato inteligente” depende da existência de um amplo arcabouço de
instituiçoes e organizaçoes de apoio. São necessários tanto o acesso aos dados
relevantes para o funcionamento adequado do mercado – quem mensura as variaçoes
climáticas? – quanto o acompanhamento de burocracias auxiliares capazes de
resolver eventuais conflitos.
Por sinal, engana-se quem supõe que a consolidação do
blockchain necessariamente eliminaria o espaço para as discordâncias entre as
partes. O que certamente ocorrerá é uma mudança nos temas que motivarão os
conflitos. São muitas as decisões envolvidas no desenho de uma solução amparada
no blockchain. Em particular, faz-se necessário escolher o algoritmo a ser
usado. A emergência de agentes com legitimidade suficiente para oferecer
soluçoes a eventuais disputas entre os usuários de plataformas descentralizadas
será uma consequência natural do amadurecimento da tecnologia.
Finalmente, é importante salientar que a consolidação do
blockchain acarreta um aumento da responsabilidade pessoal dos seus usuários.
Conforme o próprio relatório da FAO salienta, é muito difícil corrigir uma
informação errada inserida em um sistema com essas características. Preencher
um formulário com falta de atenção passará a acarretar consequências
inimagináveis até bem pouco tempo.
Feita uma projeção dos vícios e virtudes do blockchain,
seria um erro não salientar as limitaçoes de tal esforço. Vantagens potenciais
ou desafios se referem a cenários que certamente envolverão mudanças
simultâneas em outras variáveis. Dessa maneira, exercícios de “futurismo” estão
necessariamente fadados a perder vigor com o tempo. Otimistas ou pessimistas,
os analistas das consequências do uso do blockchain terão que se acostumar a
uma realidade repleta de efeitos inesperados e a emergência de novos usos para
a tecnologia. Por isso, conhecer os possíveis usos ou problemas da sua
utilização constitui apenas um primeiro passo analítico. Atualizaçoes
constantes deverão ser feitas à medida que os efeitos do uso do blockchain
transformarem outros aspectos da vida em sociedade.
(Fonte: Café Point)